De Cabrália a Abrolhos em um veleiro Laser - Bahia

Era verão na Bahia e eu estava em Cabrália, cidade a 22km ao norte de PORTO SEGURO. Comprei uma revista que trazia uma reportagem sobre o arquipélago de Abrolhos. As fotos eram lindíssimas e reparei que era próximo de Cabrália. Comingo estava Renato Raimo, que eu o conhecia de vista. Renato viria a ser um grande amigo e companheiro de viagens. Ele e o irmão de Fabio, que já era meu amigo a algum tempo. Conversa vai, conversa vem, Renato comentou que tinha um barco e que poderia ir até lá na boa.

Eu me animei com aquela historia e disse que bancava todas as despesas se ele entrasse com o barco. Ele topou na hora.

O barco era um pequeno veleiro da classe Laser, que nem era dele e sim do Fábio, que naqueles dias estava viajando.

Saimos atraz de algumas dicas para a travessia e de uma carta náutica. Como foi impossível achar uma carta náutica para levar, resolvemos copiar a lápis e plastificar. A bússola era mais ou menos confiável. As vezes ela travava. A lanterna também não era a prova d'água e durou pouco tempo. Colocamos em uma bolsa uma barraca, alimento que não requeria cozimento, algumas roupas e resolvemos sair a noite. Toda a tranqueira, junto com um bujão de água foram convenientemente amarrados no convés do Laser, que é um barco aberto e não tem cabine.

Na hora da partida apareceu Fabio e não gostou muito de estarmos roubando seu barco. Mas, como já estávamos na água, com tudo em cima, resolveu não falar nada. Eu não tinha nenhuma experiência em vela, mas o Renato tinha boa bagagem e eu confiava nisto. O vento era de uns 5 nós e a lua estava cheia. Navegamos durante horas. Fazíamos turnos de 4 em 4 horas. Quando acabou meu turno estava com tanto sono que dormi por cima da mala. Amanheceu o dia e quando eu acordei o Renato também dormia! Estávamos longe da costa e nem tinhamos idéia da nossa localização. O vento tinha acabado e Renato resolveu dormir. Remamos durante horas em direção a costa até conseguir indentificar que estávamos em Arraial da Ajuda, logo ao sul de Porto Seguro.

Chegamos na praia, encostamos o barco e resolvemos ir almoçar. Neste meio tempo encontrei com minha irmã que não via a tempos. Nem sabia que ela estava lá.

Seguiu-se uma tarde deliciosa de velejo, com vento firme e céu azul. Pescamos um sargo no corrico. À tardinha entramos na foz do rio de Caraiva e não é que para nossa surpresa encontramos um velho amigo de Renato, que tinha todos os apetrechos para fazer sashimi mas não tinha encontrado um peixe adequado. Felicidade nossa e dele. Tinhamos um sargo de um quilo e meio, mas nenhum tempero. Fomos para a casa dele e comemos peixe a noite inteira.

De manhã entrou um vento forte, de sul. O céu estava cinza mas logo começou a melhorar e saimos com muitas ondas na foz do rio. Foi difícil. Passarmos horas orçando as ondas. Comecei a notar que tinha muita espuma no horizonte: eram os arrecifes de Araripe. Ainda bem que a maré estava alta e passamos por cima dos cabeços de coral ameaçadores. Felizmente o Laser é um barco pequeno e quase não tem nenhum calado.

Fim de tarde. Entre uma onda e outra, encontramos um barco de pesca que levou susto ao nos ver naquele local. Mal dava para ver a os paredões da costa, característicos naquela região. Era mar aberto por todos os lados e nosso rumo sul nos levava para ainda mais longe da costa. O barco, carregado muito além do que deveria, me fazia as vezes temer pela quebra de algum equipamento. O leme parecia particularmente cansado, rangendo as vezes em uma onda mais forte.

Anoiteceu e Renato me passou o leme. Como a lanterna não funcionava, não dava para consultar a bússola que de qualquer modo também não estava funcionando direito. Quando apareceu o Cruzeiro do Sul, Renato me pediu para seguir em sua direção. Timão na mão, lá fui eu na mais emocinante viagem da minha vida. Um céu estrelado, seguindo o Cruzeiro do Sul com um ventinho muito bom. Era algo que eu sabia que ficaria marcado para sempre em minha vida e que mudaria muita coisa dentro de mim.

Ví a lua cheia nascer e se pôr. A idéia era enxegar o farol de Abrolhos e seguir em sua direção. Renato passava mal da comilança da noite anterior e dormia. Já eram quase 3 horas da manhã e nada do farol. Comeceçamos a achar que algo estava errado, que talvez tivéssemos pego rumo errado. De repente aparece uma gaivota e senta em cima do mastro. Foi um sinal. Logo em seguida a luz do farol apareceu bem na frente. Que felicidade! Tínhamos conseguido. Estávamos exatamente no rumo certo. O farol piscava, como que nos convidando a navegar em sua direção.

Chegamos às 8 horas da manhã em Abrolhos. Passamos em frente ao farol e encostamos em uma prainha. Logo apareceu o pessoal do Ibama, dizendo que não poderíamos ficar em terra ou seríamos presos. Abrolhos é um parque ecológico e é proibido acampar. Renato diz que prefiria o cárcere a voltar de barco sem repouso. O cara do Ibama resolveu esquecer da gente. Senão teria que nos dar comida e algum abrigo, mesmo que com uma janela com barras de ferro. Achou que era muito trabalho. De qualquer maneira nos comprometemos a não molestar os animais, não deixar nenhum lixo e ir embora assim que possível.

Tinha chegado um dia antes um veleiro de 45 pés com um casal de alemães que estavam dando a volta ao mundo. Eram dois velhinhos muito simpáticos. Fomos convidados a subir a bordo. O veleiro era maravilhoso. Nunca ví um motor como o deste barco. Nenhuma mancha de graxa. Todo equipado e impecável, contrastava com a nossa casquinha, cheia de bagagens amarradas no convés. Quando souberam de onde tínhamos vindo, resolveram nos adotar. Tivemos um belo almoço e cerveja ao pôr do sol.

Tudo aquilo parecia um sonho, mas era a pura realidade e meu coração estava cheio de felicidade. Tinha vencido o medo inicial de enfrentar tal travessia que eu sabia envolver vários riscos. Mesmo assim resolvi ver no que iria dar, porque se recuasse talvez eu nunca teria coragem de fazer as coisas que tenho vontade.

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Nota do webmaster:

Só quem conhece a região pode avaliar essa viagem. São mais de 200 milhas por uma das costas mais traiçoeiras do Brasil, cheia de recifes de coral. A própria denominação do arquipélago, Abrolhos, vem de "Abra os olhos". Muitos navios já foram para o fundo nesta área. Felizmente, nenhum deles era um veleiro Laser.

Abrolhos fica a mais de 40 milhas da costa. Não recomendamos ao leitor que tente essa viagem nestas condições. Tal empreitada requer, além de conhecimento e paciência, uma boa dosagem de sorte.

Omar